digital Duas décadas de interação nas redes sociais: o que há para comemorar? Plataformas são acusadas de lucrar com conteúdos que viciam as pessoas em polêmicas, fofocas e discursos de ódio Freepik Especialistas atestam o poder de influência dos algoritmos em interferir no comportamento e decisões, inferir e manipular, comprometendo a saúde mental das pessoas Janaina Langsdorff As redes sociais estão presentes na vida das pessoas há 20 anos. Em janeiro de 2004, o engenheiro turco Orkut Buyukkokten lançou o Orkut, adquirido posteriormente pelo Google e desativado em 2014. Um mês depois, veio o Facebook, que dominou o território hoje habitado também por Instagram, WhatsApp, TikTok, X (ex-Twitter), Threads, LinkedIn e Pinterest, entre outros. A popularização da internet para engajamento social foi avassaladora. E não parou só na busca por amigos. Opiniões, queixas e manifestações de toda natureza ganharam vozes antes caladas pelo sistema unilateral de comunicação das empresas e órgãos públicos. Logo, a exposição do estilo de vida se transformou em um dos temas preferidos de postagens ávidas por interações. Viagens, restaurantes, compras, declarações de amor, sucesso no trabalho, o corpo perfeito. As telas materializaram aspirações cada vez mais utilizadas para ostentar um mundo de mentira, aliás, profetizado em ‘O show de Truman - o show da vida’. O filme de 1998 descreve a rotina de Truman Burbank, interpretado por Jim Carrey, que experimenta uma vida artificial, orquestrada por produtores de televisão para milhões de pessoas. Foi também o prenúncio da vigilância dos reality shows. Hoje, os algoritmos operam em favor de polêmicas que geram audiência e ajudam a sustentar o modelo de negócio das plataformas. “As redes sociais são projetadas para maximizar a interação e o tempo de permanência, e podem levar ao estímulo de comportamentos associados a conteúdos polêmicos e sensacionalistas”, analisa André Miceli, professor de MBAs da FGV. A felicidade ostentada a cada post virou uma armadilha, hoje confirmada pelos próprios usuários. Um grupo de mais de 30 estados norte-americanos processou a Meta por considerar que as suas plataformas, Instagram e Facebook, utilizam recursos para atrair e viciar jovens e crianças, lucrando com a disseminação de conteúdo nocivo. Aliados a determinadas técnicas, alguns conteúdos formam uma combinação propensa a viciar e causar danos. “Não há dúvidas de que há produtos online que viciam, tais como as redes sociais. Existem obras técni- “Alguns conteúdos formam uma combinação propensa a viciar e causar danos” cas que explicam isso, existem técnicas de neurociência para viciar as pessoas em rolar para cima o conteúdo e ficar horas a fio em frente a uma tela”, ratifica Marcelo Crespo, coordenador e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em direito da ESPM. De acordo com o estudioso, o problema extrapola a tecnologia e a existência das redes sociais. O momento exige responsabilidade no cuidado com a segurança e saúde mental das pessoas. “Não é possível falar de forma extremamente objetiva sobre os limites de algorit- 14 15 de janeiro de 2024 - jornal propmark
Fotos: Divulgação Marcelo Crespo, da ESPM: neurociência para viciar André Miceli, da FGV: mercado não se ajustará sozinho Luís Guedes, da FIA: qualidade e efetividade reduzidas mos, mas é possível delinear conteúdos que devem ter maior limitação na divulgação”, explica Crespo. As restrições já impostas à publicidade da indústria tabagista e de bebidas alcoólicas podem guiar a transição para um ambiente online seguro. Na opinião de Miceli, a acusação associada ao vício é plausível dado o poder de influência dos algoritmos em interferir no comportamento, inferir e manipular pessoas. “O modelo de negócio é feito dessa forma. A sociedade, e não a tecnologia, é que vai estabelecer os limites éticos, morais e regulatórios, que inevitavelmente vão aparecer para os algoritmos, garantindo que eles promovam ou, pelo menos, aumentem as chances de promover conteúdos que não prejudiquem grupos vulneráveis”, avalia Miceli. O professor Luís Guedes, da FIA Business School, mostra mais evidências. “Os engenheiros e outros profissionais que idealizam e treinam os algoritmos de redes sociais utilizam técnicas avançadas e orientadas a dados para aumentar o engajamento do usuário, muitas vezes, priorizando conteúdos que provocam reações emocionais fortes, como discursos de ódio ou polêmicas”, reforça. Notificações, conteúdo infinito e formatado para cada usuário e recompensas intermitentes são alguns dos artifícios comumente implementados para aprisionar a atenção dos usuários. CONSEQUÊNCIAS EXTREMAS Não à toa, os assuntos que mais engajam estão frequentemente ligados a discursos de ódio, difamações, violências e fofocas. Uma das mentiras levou à morte de Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, na cidade de Araguari (MG), no dia 22 de dezembro de 2023. Conversas inverídicas da estudante sobre um suposto relacionamento com o humorista Whindersson Nunes foram publicadas por redes de fofocas. Mesmo desmentida por ambos os lados, a fake news foi mantida no ar, provocando uma avalanche de mensagens ofensivas direcionadas a Jéssica, que já lutava contra um quadro de depressão. “Isso aconteceu porque as pessoas atacam as outras pessoas também. Existe uma grande parcela de culpa de todo mundo. A gente não quer mais vítimas. Errado é o topo da pirâmide, que lucra com isso”, comenta Whindersson Nunes em vídeo no Instagram. O influenciador se “A gente não quer mais vítimas. Errado é o topo da pirâmide, que lucra com isso” comprometeu a acompanhar as investigações e iniciar um movimento para criar a Lei Jéssica Vitória. A intenção é aprimorar as normas brasileiras e neutralizar o “jornalismo não oficial, que é muito perigoso”, avisa Whindersson. Estopins da notícia falsa, ‘Garoto do Blog’ e ‘Choquei’ – esse último com mais de 20 milhões de seguidores no Instagram – são alguns dos investigados pela Polícia Civil de Minas Gerais, que cogita a possibilidade de enquadrar os envolvidos no crime de indução ao suicídio. “A Choquei passa por um profundo processo de reavaliação interna dos métodos adotados visando a implementação de filtros e códigos de conduta para evitar que episódios dessa natureza voltem a acontecer”, escreveu o perfil em nota. Ambas as páginas integraram um projeto da Mynd chamado Banca Digital, que reúne cerca de 30 perfis de fofoca e humor no Instagram. O perfil ‘Choquei’ já não faz mais parte do casting da Mynd. Já o ‘Garoto do Blog’ “está afastado de nossas atividades comerciais até a conclusão do caso. A Mynd, como agência de marketing de influência, cuida exclusivamente da intermediação de venda de publicidade em perfis nas redes sociais. A Mynd não participa em nenhum momento da definição do conteúdo editorial de nenhum perfil”, defende-se a empresa, após vídeos e documentários especularem sobre a manipulação de conteúdo nas páginas por ela agenciadas. “Os perfis são independentes e administrados por seus donos, que definem todo e qualquer conteúdo”, reitera a agência liderada pelos sócios Fátima Pissarra, Preta Gil, Carlos Scappini e Marcus Buaiz. A Mynd atua na gestão de imagem, parcerias com marcas e desenvolvimento de estratégias individuais de mais de 400 nomes. Por meio de um comitê de integridade, criado há três anos, a empresa alega atuar “contra divulgação de fake news e incitação ao ódio, assim como os linchamentos virtuais. Lamentamos profundamente o caso ocorrido com Jéssica Canedo e prestamos toda solidariedade à família”, declara a Mynd, que ainda diz empenhar esforços para que o setor de marketing de influência e notícias “seja regulamentado o mais breve possível, com regras rígidas para que se evite qualquer situação desse tipo ou em qualquer outro formato que não siga a liberdade de expressão, respeito e verdade”. Parlamentares protocolaram requerimento para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e denúncia no Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Procuradoria-Geral da República (PGR) a fim de apurar o trabalho desenvolvido para os influenciadores representados pela Mynd. REPARAÇÕES A ansiedade acentuada pela contagem de curtidas e a frustração com a realidade são apenas algumas facetas do meio digital, que também decretou o fim de negócios em diversos segmentos. Outros entraram em uma crise que perdura até hoje. A mídia é um exemplo. Mas algumas reparações começam a ser feitas. O Google se comprometeu a pagar R$ 362 milhões ao ano para a indústria de comunicação e plataformas de mídia canadenses pelo uso de conteúdo. “A essência do Google é criar produtos para ajudar pessoas e empresas a alcançarem um objetivo maior. É isso que fazemos todos os dias no mundo inteiro e no Brasil desde a nossa chegada, em 2005. Os brasileiros estão entre os principais consumidores dos nossos produtos e plataformas, com mais de um bilhão de usuários”, informa o Google. A empresa de tecnologia lembra que, do outro lado, estão empresas brasileiras dos mais diversos portes, que utilizam as suas plataformas de anúncios para alcançar a audiência e vender produtos e serviços, ativando a economia. “Os nossos serviços ajudaram a movimentar R$ 153 bilhões no Brasil em 2022, conforme o último ‘Relatório de impacto econômico’, divulgado em junho do ano passado”, responde a empresa. A publicidade digital somou investimentos de R$ 16,4 bilhões no primeiro semestre do ano passado, jornal propmark - 15 de janeiro de 2024 15
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